O circo estava
armado, os palhaços maquiados, prontos para entrar. Malabaristas andavam pelos
camarins a toda hora de um lado para o outro apressando a todos. Uma confusão
só. A platéia era enorme, e me parecia extremamente ansiosa para que tudo enfim
começasse. Várias e várias crianças com sorrisos imensos estampados na cara
esperando para ver pela primeira vez o mundo da fantasia entrar em cena. Menos uma. Ela
não sorria. Nem chorava. Mas seus olhos estampavam medo. Era com certeza a
criança mais assustada que eu já vi. Ela me pareceu sozinha, sua única
companhia era um urso azul, que apertava até não poder mais. Parecia ser a
única coisa com sentido pra ela naquele momento. E talvez fosse. Talvez nunca
tivesse ido ao circo, talvez estivesse sozinha e perdida, talvez apenas
assustada com tanto barulho, tanta gente, tanta coisa estranha.
O espetáculo
começara. Palhaços, malabaristas, contorcionistas, bailarinas, meninas que
cabiam numa pequena mala. E enfim o
mágico, o tão esperado mágico. Enfim minha vez de entrar em palco. Confesso
que ainda fico nervosa ao entrar no palco, mesmo sabendo que nunca deixaram de
bater palmas pra qualquer coisa que eu fizesse. Quando pisei naquele picadeiro
minhas pernas tremeram, o circo nunca havia enchido tanto. Pela primeira vez
não ouvi meu nome sendo anunciado por causa do barulho que as pessoas faziam. A
menina de cabelos negros e pele mais branca que a da branca de neve me parecia
mais assustada, com mais medo. Estava curiosa pra saber o que estava
acontecendo com aquela criança, mas não podia deixar de aproveitar tanta gente
ali prestando atenção em
mim. Acabei me distraindo, e quando o espetáculo acabou,
todos se levantaram pra ir embora, e naquela confusão eu não a vi mais. Onde
estaria aquela menina minúscula que segurava um ursinho azul? Corri no meio das
pessoas, olhava pra todas as crianças que eu via, mas nenhuma se parecia com
ela. Como pode uma criança tão marcante sumir? Será que havia ido embora antes
do espetáculo acabar? Depois de uns dez minutos procurando, desisti. Voltei ao
lugar onde ela havia sentado e para a minha surpresa lá estava ela. Sozinha,
desta vez sem ursinho e chorando.
Fiquei
paralisada olhando pra uma menina tão pequena, chorando em silêncio. Ela me
encarava nos olhos, e muitas lágrimas caiam sem parar, por alguns segundos
senti-me culpada por tanta tristeza. Parecia que estava esperando que eu
fizesse alguma coisa, que eu quebrasse aquele momento e a fizesse sorrir, mas
eu não sabia o que fazer, mal sabia o que pensar. Estávamos a uns dois metros
de distância, e parecia haver uma enorme parede de vidro nos separando. E
então, ela a quebrou. A menina enxugou as lágrimas e correu em minha direção.
Assustei-me um pouco, mas esperei. Ela chegou perto de mim e sem hesitar
abraçou minhas pernas. Abaixei-me e retribuí. Não sei exatamente por quanto
tempo fiquei ali, ajoelhada abraçando uma menina que nunca havia visto, se quer
trocado uma palavra. Sem dúvidas, o abraço mais acolhedor que já havia
recebido. Ela continuou chorando, e eu chorei junto, não sabia o motivo, mas
foi mais forte que eu. Ouvi uma voz masculina ao longe, não me importei muito
no começo, mas a voz ia ficando mais forte, mais perto e mais nítida. Aquela
voz, não me era estranha... Eu conhecia aquela voz de algum lugar. Foi então
que senti que alguém arrancava a menina de meus braços. Foi tão rápido que mal
pude agir. Nunca percebi tantas coisas em tão poucos segundos. Era um homem
forte e alto. Me pareceu familiar. Eu podia estar enganada, afinal, trabalhar
no circo me leva a conhecer muitas pessoas. Ele agarrou a menina nos braços,
assustado. Olhou pra mim com os olhos mais abertos que podia. Ofegante disse:
"O que estava fazendo com a minha filha?". Como explicar uma situação
como essa? Eu realmente estava abraçada com a filha de um homem que eu não
conheço, aos prantos e tão assustada como se fosse culpada de um crime:
"Senhor, perdão. Sua filha estava sozinha e assustada. Eu estava
apenas..." E ele me interrompeu, desta vez com a voz serena e firme:
"Eu já entendi, eu que lhe peço desculpas. Foi um descuido meu deixá-la
sozinha. Obrigado por cuidar dela". Ele simplesmente se virou e foi
andando em direção a multidão com a menina nos braços, sem dizer mais nada. Não
sei se eu estava assustada demais com a situação, ou se realmente estava certa,
mas nos meus pensamentos ele parecia fugir. Ela olhava pra trás, e alguma coisa
nos olhos daquela menina me diziam "Não me deixe ir". Eu voltei ao
meu camarim, e mais uma vez para minha surpresa maior, encontrei em cima de
minha mesa de maquiagem o ursinho azul. O que estava acontecendo? Meu cérebro
deu voltas dentro da minha cabeça, e eu estava confusa como nunca. O que
estaria fazendo aquele urso azul, sujo em cima da minha mesa de maquiagem?
Guardei o urso
junto das minhas coisas, quase tudo já estava pronto pra minha partida. Decidir
largar o circo e ter uma vida normal longe de toda fantasia não tinha sido uma
decisão fácil. Era a minha família afinal, tantos anos ao lado de pessoas tão
maravilhosas que cuidaram de mim como filha. Mas eu sabia que tinha escolhido o
certo, que eu precisava viver uma vida diferente e não voltaria atrás.
O dia da minha
partida foi o mais triste da minha vida, fizeram uma despedida e tanto. Um dos
meus melhores amigos, Marcos, que trabalhava como palhaço, foi o que sofreu com
tudo aquilo:
- Você sabe
que vou sentir sua falta, não sabe?
- Eu também
vou sentir muito a sua.
- Anita, há
algo mais te deixando triste além da sua partida?
- Já que
perguntou, precisava mesmo falar sobre isso. Na minha ultima apresentação,
havia uma menina, diferente de todas que eu já vi, e aconteceu uma coisa muito
estranha. Ela segurava um ursinho azul nas mãos...
- Igual ao
seu?
- Esse urso
que estou levando comigo é o dela.
- Anita, não
pode ser. Esse urso está com você há semanas, sua ultima apresentação foi neste
sábado.
Fui pra casa
atordoada com tudo o que Marcos me disse. É claro que deve ter havido algum
engano, eu nunca vi esse urso antes. O apartamento era pequeno, não havia
muitos móveis e eu precisava de um emprego com toda urgência. Arrumei algumas
coisas, coloquei o ursinho na cômoda. Extremamente cansada dormi, o dia
seguinte seria longo.